1 de mai. de 2007

Plebiscitos, referendos? Qual a sua posição!

Por propostas da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), através do seu presidente Cezar Brito, propostas estas baseadas em sugestões feitas pelo jurista Fábio Konder Comparato, foram apresentados projetos de lei na Câmara e no Senado regulando a convocação de plebiscitos e referendos e estabelecendo a forma de revocação de mandatos. Uma seqüência de artigos na Folha de S.Paulo, entre de Fábio Konder Comparato, Bolívar Lamounier e Cezar Britto, sobre o direito da minoria de convocar plebiscitos e referendos

1) Delegados do povo ou donos do poder?
Fábio Konder Comparato
2) Procurando Rousseau, encontrando Chávez
Bolívar Lamounier
3) Quem tem medo do povo?
Fábio Konder Comparato
4) O bebê e a água do banho
Bolívar Lamounier
5) Democracia com povo e sem golpe
Cezar Britto
6) Ao inferno à procura de luz
Bolívar Lamounier

Leia abaixo a íntegra dos artigos.

Delegados do povo ou donos do poder?
Fábio Konder Comparato
Folha de S. Paulo, 27 de fevereiro de 2007

Estamos ante parlamentares que falam sobre propostas que não leram, com o intuito de preservar a usurpação da soberania popular

Na edição de maio de 1811 do "Correio Braziliense", Hipólito da Costa fez a seguinte profissão de fé: "Ninguém deseja mais do que nós as reformas; mas ninguém aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo; pois conhecemos as más conseqüências desse modo de reformar; desejamos as reformas, mas feitas pelo governo; e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo".
O grande jornalista teve o mérito de dizer sem eufemismos o que pensava. Hoje, quase dois séculos depois que tais palavras foram escritas, ninguém no meio político ousa dizer-se de direita ou antidemocrata, mas quase todos continuam plenamente convencidos de que o povo é, por natureza, incapaz de exercer a soberania. Esta pertence, por direito imemorial, àquele grupo que, por consolidado abuso de linguagem, insistimos em denominar "a elite".
Admite-se, quando muito, que o povo escolha periodicamente os seus tutores ou curadores. Mas a esmagadora maioria destes, como ninguém ignora, exerce o encargo no seu próprio interesse e benefício.
A Constituição Federal de 1988 teve o grande mérito de iniciar o processo de desmontagem desse esquema cínico e perverso, ao afirmar, logo no primeiro de seus artigos, que o povo pode e deve exercer o seu poder soberano diretamente, e não apenas pela eleição de mandatários. Em conseqüência, dispôs expressamente em seu artigo 14 que o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, tanto quanto o sufrágio eleitoral, são manifestações da soberania popular.
Como era, porém, de esperar, esse mandamento constitucional foi desde logo interpretado como fórmula de retórica política, sem nenhum efeito prático. O povo pode continuar a eleger os seus autoproclamados representantes, mas dependerá sempre da autorização prévia destes para votar em plebiscitos e referendos.
Foi para desfazer essa fraude oligárquica que a Ordem dos Advogados do Brasil ofereceu várias sugestões ao Congresso Nacional, prontamente transformadas em projetos de lei e propostas de emenda constitucional.
Agora, com o anúncio pelo ministro Tarso Genro de que o governo federal apoiaria tais proposições, as reações negativas no Congresso não se fizeram esperar.
Ouvidos por este jornal, quase todos os líderes de partidos disseram que retirar do Congresso Nacional a prerrogativa de comandar a realização de plebiscitos e referendos redundaria em concentrar mais poderes na pessoa do chefe de Estado, criando, assim, o risco de institucionalizar o "chavismo".
Sucede que, em ambos os projetos de lei originados na Ordem dos Advogados do Brasil -o de nº 4.718/2004, na Câmara, e o nº 1/2006, no Senado, este apresentado pelos eminentes senadores Eduardo Suplicy e Pedro Simon-, o presidente da República não tem poder de iniciativa nessa matéria. Os plebiscitos e referendos só poderão ser convocados por iniciativa do próprio povo ou de um terço dos deputados ou senadores (o que reforça sobremaneira o poder de fogo da minoria parlamentar contra o rolo compressor governamental).
Insinuou-se, também, que, pelo sistema proposto, o povo poderia decidir diretamente em plebiscito a reeleição indefinida do presidente da República. Insinuação maliciosa e falsa, pois, em ambos os projetos de lei, ao contrário do que dispõe a vigente lei nº 9.709, de 1998, as matérias suscetíveis de decisão em plebiscitos são taxativamente enumeradas -e entre elas não consta a reeleição do chefe de Estado.
Outros, ainda, declararam-se contrários ao "recall", tal como proposto, porque ele atingiria tão-só os parlamentares, poupando o presidente da República. Mais uma inverdade: na proposta de emenda constitucional nº 73/2005, em tramitação no Senado, a revogação popular de mandatos eletivos diz respeito não só aos membros do Congresso Nacional mas também ao presidente da República. Aliás, é sempre bom lembrar que esses institutos estão longe de ser novidades revolucionárias. A Suíça conhece e pratica com freqüência o referendo desde o século 15. O "recall" existe em 18 Estados da Federação norte-americana, em alguns deles há quase um século.
Em suma, estamos diante de parlamentares que se pronunciam sobre propostas que não leram, com o mal disfarçado objetivo de preservar uma inconfessável usurpação da soberania popular.
FÁBIO KONDER COMPARATO, 70, advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB e fundador e diretor da Escola de Governo, em São Paulo. É autor, entre outras obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos".


Procurando Rousseau, encontrando Chávez
Bolívar Lamounier
7 de março de 2003
Fiquei deveras aturdido ao constatar que a veneranda OAB resolveu colocar no colo do presidente da República a mortífera arma do plebiscito

Conhecido há décadas como o país do café, do Carnaval e do futebol, o Brasil está prestes a se notabilizar também como a segunda pátria de Rousseau. Entre nós, a teoria da "bondade natural" não parece comover somente os símiles nacionais dos intelectuais da "rive gauche" parisiense. Encanta até instituições importantes, como a Ordem dos Advogados do Brasil, aparentemente convertida à idéia de substituir as instituições de representação política pela miragem da "democracia direta". Não é por acaso que a figura imaginária do "bom selvagem" prospera no Brasil. Ela encontra campo fértil em nossas elites, desde logo nos setores acadêmico e clerical, entre os quais permanece bem viva a crença de que, com "vontade política", todos os problemas do país podem ser facilmente resolvidos. O que falta é, portanto, convocar o "povo", pô-lo ao corrente dos assuntos e aguardar o grande consenso que ele sem dúvida haverá de elaborar.
Daí em diante, as instituições representativas se desmancharão no ar, por desnecessárias, e a sociedade reconquistará a sua perdida "soberania", ou seja, o governo de si mesma.
Entre nós, o mais articulado e ardoroso proponente da "democracia direta" tem sido o jurista Fábio Konder Comparato.
O que ele propõe é modificar e recorrer com mais freqüência a plebiscitos, referendos e iniciativas populares de legislação, a fim de aumentar e tornar mais decisiva a influência política do "povo", vale dizer, de uma miríade não especificada de grupos corporativos e movimentos sociais.
Ao mesmo tempo, Comparato propõe refazer de alto a baixo a máquina de governo, com vistas a enfrentar os grandes desafios do crescimento econômico e da reforma social. Para atingir esse duplo objetivo, ele sugere vincular verticalmente a democracia "direta" a uma estrutura de governo ainda mais centralizada e intervencionista que a atual.
Em poucas palavras, a moeda constitucional comparatiana teria a "soberania popular" de Rousseau numa face e, na outra, uma forma de governo evocativa da "ditadura republicana" de Augusto Comte. As meditações de Fábio Konder Comparato vieram-me à memória poucos dias atrás, quando tomei conhecimento de um projeto de "reforma política" encaminhado ao governo pela OAB.
E quero aqui confessar a minha ingenuidade. Sempre entendi que entidades voltadas para a defesa das liberdades e da ordem constitucional não deveriam tomar e de fato não tomariam nenhuma iniciativa no sentido de debilitar o Poder Legislativo. Toda vez que o Legislativo é enfraquecido ou suprimido "de jure ou de facto", os partidos, a oposição e todo o pluralismo político vão para o vinagre. A própria imprensa é às vezes forçada a pôr as barbas de molho.
Por isso, fiquei deveras aturdido ao constatar que a veneranda ordem, representante de uma classe conhecida por seus valores liberais, resolveu colocar no colo do presidente da República (falo genericamente, não especificamente do presidente Lula) a mortífera arma do plebiscito.
Pela proposta, a prerrogativa de convocar consultas desse tipo deixa de ser privativa do Congresso Nacional. Trata-se evidentemente de um Exocet apontado contra o Congresso. Um presidente inclinado a governar autoritariamente nem precisará dispará-lo; só por existir, essa arma começará a produzir os efeitos perniciosos que dela se podem esperar.
Infelizmente, o que acabo de dizer é uma pequena parte da história. Ao criar seu "bebê de Rosemary", a OAB não descuidou de providenciar-lhe alguns irmãos e primos.
Uma idéia cara aos partidários da "democracia direta" é o "recall", a revogação de mandato eletivo por votação popular, reminiscência inócua do "mandato imperativo" medieval.
Confrontada com dificuldades tão óbvias, a OAB deu um salto espetacular, digno do melhor James Bond.
Propôs um "recall" acionado por iniciativa popular de legislação, em nível nacional, com o efeito de revogar simultaneamente os mandatos de todos os parlamentares e o do presidente da República, uma vez decorrido um ano das respectivas eleições.
Nitroglicerina pura, como diria certo filósofo. A eventual aprovação das idéias acima expostas certamente abriria o caminho para uma ditadura ao estilo venezuelano -e aqui me refiro a uma hipótese algo otimista. O resultado mais provável seria o caos.
BOLÍVAR LAMOUNIER, 63, doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia (EUA), é consultor de empresas e autor do livro "Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira", entre outras obras.


Quem tem medo do povo?
Fábio Konder Comparato
Folha de S. Paulo, 23 de março de 2007

O nosso país logrou realizar notável façanha política: instituiu e fez funcionar, por mais de um século, uma República de interesse privado e uma democracia sem povo. Salvo alguns golpes de Estado e os 20 anos de regime militar, tem-se aceito como verdade de evidência que tudo transcorre nos quadros da normalidade republicana e democrática.
Eis, porém, que uma vaga de inquietação se levanta subitamente no coração das classes dirigentes e na cabeça dos seus "intelectuais orgânicos". A dúvida cruel é esta: o povo continuará a dormir tranqüilamente em "berço esplêndido"?
Um antigo procônsul econômico do regime militar e signatário do AI-5 de 1968, que assegurou a impunidade para os assassinos, torturadores e estupradores ao suspender o habeas corpus e as garantias da magistratura, declara-se tragicamente preocupado com o futuro de nossa democracia.
Um brilhante jornalista, com maldisfarçada ambivalência de propósitos, despeja o vitríolo do seu sarcasmo contra a OAB, considerando-a uma "guilda profissional" que não tem representatividade para propor mudanças no sistema vigente. Um doutor em ciência política e consultor de empresas alerta para o risco de instauração do "chavismo" ou da abertura do caos em nossa terra.
Ficamos todos sensibilizados com as advertências. Não conseguimos, porém, compreender por que razão nenhum dos três personagens manifestou a mesma preocupação com o estado de marasmo econômico e desagregação social persistente há mais de um quarto de século neste país. Ou seja, exatamente o inverso do lema de nossa bandeira: desordem e regresso.
Em todo esse largo período, o crescimento econômico do Brasil ficou abaixo da média mundial, um fato sem precedentes em nossa história.
Em 1980, metade da renda nacional era distribuída como remuneração do trabalho; agora, só um terço. Já temos 8 milhões de desempregados formais, sem contar a multidão dos definitivamente excluídos do mercado de trabalho. O rendimento médio do trabalhador brasileiro, medido pelo Dieese e o Seade, caiu 33% entre 1995 e 2005.
O da classe média, isto é, o conjunto dos que ganham entre três e dez salários mínimos, segundo o Ministério do Trabalho, decresceu nada menos do que 46% entre 2000 e 2006.
Alguma surpresa se tais fatos coincidiram com a vaga de violência e banditismo que se alastrou por todo o país? É possível responder a tudo isso sem uma mudança ampla na estrutura dos poderes decisórios do Estado?
Para os três personagens mencionados, a iniciativa de reforma política tomada pela OAB e outras entidades da sociedade civil (foram mais de 30 a assinar um "manifesto por uma reforma política ampla, séria e democrática", entregue ao Congresso) é indevida e extemporânea. Os partidos políticos e os malchamados poderes públicos (lembremos que "publicus", em latim, indica o que pertence ao povo) é que devem se ocupar com exclusividade do assunto, fazendo-o com o zelo e a competência que todos reconhecemos e admiramos...
Ora, o que se desconhece é que a OAB tem não só o direito mas o dever legal de atuar nessa matéria. A primeira de suas finalidades, prescrita na lei nº 8.906/2004, que estabeleceu o seu vigente estatuto, é "defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de Direito, os direitos humanos e a justiça social".
Como diria o respeitável conselheiro Acácio, pode-se fazer funcionar qualquer regime político sem povo, menos o democrático.
A não ser que a palavra "povo" tenha sido empregada em dois sentidos no artigo 1º, parágrafo único, da Constituição ("Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição"). Ela designaria o conjunto de cidadãos quando se trata de eleger representantes, mas significaria "uma miríade não especificada de grupos corporativos e movimentos sociais", segundo a expressão do mencionado cientista político, quando se quiser tomar decisões populares em plebiscitos e referendos. Obviamente, nesta última hipótese, o Congresso Nacional deve aparecer como substituto necessário desse ajuntamento.
Será possível que ainda não aceitamos o fato elementar de que, numa democracia, é o povo que constitui o Poder Legislativo, e não o contrário?
De qualquer forma, os paladinos da conservação ilimitada do status quo podem se preparar para viver uma fase de crescente angústia: o povo brasileiro acabará, enfim, por exercer a soberania que lhe foi desde sempre negada. É uma questão de tempo.
Viva o povo brasileiro!
FÁBIO KONDER COMPARATO , 70, advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB e fundador e diretor da Escola de Governo, em São Paulo. É autor, entre outras obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos".


O bebê e a água do banho
Bolívar Lamounier
Folha de S. Paulo, 23 de março de 2007
Li e reli as ponderações do dr. Fábio Konder Comparato com a atenção que merecem, mas não consegui exorcizar meus receios

Em artigo intitulado "Procurando Rousseau, encontrando Chávez" "Tendências/Debates", 7/3), opinei que a eventual implantação da reforma política sugerida ao governo pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) teria conseqüências nefastas. Meu texto suscitou algumas reações iradas e um substancioso comentário do professor Fábio Konder Comparato, fervoroso defensor do projeto, neste mesmo espaço da Folha ("Quem tem medo do povo?", 13/3).
Realmente, minha expectativa era que a OAB, com sua inegável autoridade, apontasse soluções realistas para os problemas de organização institucional que nos vêm há muito tempo afligindo, em particular o esvaziamento do Poder Legislativo, tema que obviamente envolve as questões éticas dramatizadas nos últimos dois anos e se estende aos partidos políticos e ao sistema eleitoral, entre outros aspectos.
Infelizmente, o projeto OAB/Comparato optou por jogar fora o bebê com a água do banho. Descrendo quase totalmente da democracia representativa, o texto restringe drasticamente o espaço da representação e propõe um modelo que, à falta de melhor termo, eu denominaria "cesaro-anarquismo", um híbrido de princípios opostos, ambos levados ao paroxismo. Como seria a operacionalização prática de tal concepção?
Primeiro, o projeto eleva o arbítrio do Poder Executivo à enésima potência, conferindo ao presidente da República a prerrogativa de convocar plebiscitos sem ouvir o Congresso Nacional. Ora, a soma de poderes já atualmente concentrados no Executivo é de causar arrepios a quem quer que preze o equilíbrio e a independência mútua das instituições no regime democrático.
Para quebrar a espinha do Poder Legislativo, ele conta com as medidas provisórias; para desvitalizá-lo, com o Orçamento autorizativo; para humilhá-lo, com aquele "milhozinho" distribuído por meio de emendas parlamentares individuais. Para sufocar a economia e a capacidade privada de iniciativa, ele dispõe de numerosos instrumentos, desde logo o gasto público e a correspondente carga tributária, cujos níveis e qualidade atuais me dispenso de comentar.
Mas isso não é tudo.
Sem cometer a tolice de debitar tantos problemas na conta do atual governo, observo que o presidente Lula inicia seu segundo mandato com obedientes três quartos ou mais de apoio na Câmara, aliados carnais nas presidências da Câmara e do Senado e lúcida simpatia por parte dos governadores. E, aparentemente, já cogita se reforçar na área das comunicações, por meio de uma TV estatal.
No sentido oposto, o projeto institui a intervenção popular no processo decisório numa escala jamais praticada em nenhum país, por meio do chamado recall (revogação de mandatos por votação popular), instrumento não desprovido de lógica se aplicado em pequenas circunscrições eleitorais, com base no voto distrital puro, a fim de revogar mandatos de parlamentares, caso a caso.
Mas a fórmula alvitrada pela OAB e pelo dr. Comparato vai muito além disso. Referendos revocatórios poderiam ser obrigatoriamente convocados pelo voto da maioria da Câmara ou mediante abaixo-assinados subscritos por 2% do total de eleitores.
Para revogar qual ou quais mandatos? Resposta: todos. Tal engrenagem poderia ser acionada e mandar para casa, simultaneamente, todos os deputados e o próprio presidente da República (!) uma vez decorridos 12 meses das respectivas eleições. Nesse aspecto, é preciso convir que o egrégio colegiado da OAB operou prodígios. Transformou a antiquada espingardinha do recall numa "cortadora de margaridas", a temível "daisy cutter" que os americanos andaram despejando nos confins do Afeganistão.
Li e reli as ponderações do dr. Comparato com a atenção que merecem, mas não consegui exorcizar meus receios. Com a melhor das intenções, "ça va sans dire", o que o projeto me parece recomendar é um Executivo dotado de poderes ainda maiores que os atuais, com o contrapeso fiscalizador de um Legislativo reduzido à condição de pedinte andrajoso. Temo, realmente, que tais idéias desemboquem num populismo autoritário semelhante ao regime "bolivariano" do coronel Hugo Chávez, cujos supostos avanços democráticos recebem, aliás, rasgado elogio na justificação da proposta.
BOLÍVAR LAMOUNIER, 63, doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (EUA), é consultor de empresas. É autor de, entre outras obras, "Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira" (Augurium Editora, 2005).

Democracia com povo e sem golpe
Cezar Britto
Folha de S. Paulo, 30 de março de 2007

Nosso projeto fortalece a posição do Congresso ante o presidente da República e coloca o povo no centro das decisões nacionais.

Em artigo publicado nesta Folha ("Tendências/Debates", 21/3) -o segundo em que se ocupa da proposta de reforma política encaminhada pela OAB ao Congresso Nacional-, o eminente cientista político Bolívar Lamounier, cujos méritos acadêmicos reconhecemos, comete ("data venia") algumas impropriedades, possivelmente decorrentes de leitura apressada.
Afirma que em nossa proposta, concebida sob a orientação do jurista e professor Fábio Konder Comparato - e aprovada pela unanimidade do Conselho Federal da OAB -, o presidente da República tem "a prerrogativa de convocar plebiscitos e referendos sem ouvir o Congresso Nacional".
Ora, é exatamente o contrário.
Em contraste com todos os outros países que admitem a realização de referendos e plebiscitos, nosso projeto é o único que NÃO dá ao chefe do Executivo essa prerrogativa. Muito pelo contrário. Confere à minoria qualificada -um terço de qualquer das Casas do Congresso- a iniciativa de plebiscitos e referendos.
Isso significa, bem ao contrário do que sugere a análise, que a proposta neutraliza o rolo compressor governamental, que em regra se articula com a maioria parlamentar para barrar iniciativas contrárias a seus interesses. Nosso projeto, portanto, fortalece, sim, a posição política do Congresso perante o presidente da República. Obriga a maioria parlamentar a levar a sério a posição da minoria.
Nesses termos, consideramos desnecessário desmentir afirmações que se desdobram a partir desse pressuposto inexistente, como o de que a proposta descrê "quase totalmente" na democracia representativa. O "quase totalmente", inclusive, adquire contornos herméticos: por que o "quase"? Parece-nos tão inconsistente quanto uma "meia gravidez". Não há meia descrença: ou se crê ou não se crê. No nosso caso -e da proposta em pauta-, não só cremos como prestigiamos a democracia representativa.
O recall, inclusive, objeto de outra crítica do articulista, visa a resgatar a dignidade e a respeitabilidade da representação política. Não a suprimi-la ou a enfraquecê-la. Não é invenção nossa nem consta que, onde é adotado, haja enfraquecimento da representação política. O recall é admitido, desde o começo do século 20, em 18 unidades da Federação norte-americana: 15 Estados, o Distrito de Colúmbia, a ilha de Guam e as ilhas Virgens.
É curioso que, sendo adepto do parlamentarismo, Bolívar Lamounier julgue abusivo que pelo recall não só possa ser revogado o mandato dos chefes de Executivo e dos senadores mas também ser dissolvida a Câmara dos Deputados.
No parlamentarismo, a dissolução do Parlamento ocorre por decisão solitária do chefe de Estado. No nosso projeto, patrocinado no Senado por Eduardo Suplicy (PT-SP) e Pedro Simon (PMDB-RS), a dissolução da Câmara dos Deputados obedece, muito mais democraticamente, à iniciativa do próprio povo.
Feitos esses esclarecimentos, parece-nos despropositado o receio de que as idéias constantes do projeto da OAB "desemboquem num populismo autoritário semelhante ao regime bolivariano do coronel Hugo Chávez".
Ao que nos conste, não foi Chávez quem inventou os instrumentos da democracia direta, que remontam às origens da própria democracia -e que, no Brasil, foram acionados com êxito diversas vezes no curso da história recente. A Constituição de 1988 os estabelece, em seu artigo 14.
Em 1962, o povo foi chamado a manifestar-se a respeito do sistema de governo. A renúncia de Jânio Quadros, um ano antes, havia imposto ao país um arremedo de parlamentarismo para negar ao vice-presidente João Goulart, eleito no sistema presidencialista, o direito de governar. Era uma manobra golpista. Em plebiscito, o povo disse não ao golpe.
Em 1992, por imposição da Constituição de 1988, o povo foi novamente chamado a optar entre o regime (monárquico ou republicano) e o sistema (presidencialista ou parlamentarista) de governo. Optou pela república e pelo presidencialismo. Há dois anos, manifestou-se, em referendo, contrário à proposta que proibia o comércio de armas de fogo no Brasil. Deixou claro que não confia na eficiência da segurança que o Estado lhe oferece.
Concorde-se ou não, votou consciente e deu seu recado.
Para que esses instrumentos, que colocam o povo no centro das decisões nacionais, não sejam pervertidos em seus propósitos, podem-se acrescentar outras garantias. Uma delas: excluir de consulta direta as cláusulas pétreas constitucionais, como a república, a federação, a democracia, a periodicidade dos mandatos e a ampliação da reeleição.
CEZAR BRITTO, 45, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).


Ao inferno à procura de luz
Bolívar Lamounier
Folha de S. Paulo, 23 de abril de.2007

Um dado auspicioso na cena política brasileira é o que se tem denominado democracia "participativa" -o ideal de uma participação relevante e mais diversificada, não limitada aos períodos eleitorais. Não vejo como alguém possa se opor a isso; quanto mais, melhor.
A expressão "democracia direta" designa algo bem diferente. Aqui estamos falando de uma corrente de pensamento profundamente refratária à única democracia que de fato existe no mundo moderno: a representativa. Sua raiz principal é o sonho romântico de recriar radicalmente a sociedade, restabelecendo o modo de vida "espontâneo" que supostamente teria existido no passado e impedindo o surgimento de instituições políticas permanentes.
Na prática, a democracia dita "direta" reduz-se a uns poucos instrumentos bem conhecidos, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de legislação -acolhidos no Brasil pela Constituição de 1988. Não morro de amores por nenhum deles, mas admito que possam ser úteis em conjunturas especiais e em relação a determinadas matérias, entre as quais obviamente não se incluem questões econômicas ou políticas complexas como privatização, endividamento ou sistema de governo.
O plebiscito, especialmente, pode ser o caminho para dirimir impasses emocional e valorativamente carregados, como aborto, eutanásia, maioridade penal ou pena de morte. Sou bem menos flexível em relação ao conceito neo-romântico de uma democracia sem mediações institucionais e, de modo geral, a mecanismos capazes de produzir impactos sistêmicos excepcionalmente fortes.
Problemas desse tipo impregnam até a medula a reforma política sugerida pela OAB, e em particular a figura do "plebiscito revocatório".
Refiro-me aqui à possibilidade de "des-eleger", mediante plebiscito de iniciativa popular, representantes infiéis (?) ao mandato, ou envolvidos em corrupção etc. Trata-se, nada mais e nada menos, de admitir a revogação, nos termos acima, do mandato dos chefes de Executivo e dos senadores, e de toda a Câmara dos Deputados, com a conseqüente convocação de novas eleições.
Salta aos olhos que a eventual aplicação de tal fórmula atingiria em cheio o sistema político, no mínimo por difundir uma premonição de acefalia institucional. Nada a ver, portanto, com o "recall" norte-americano.
Raramente aplicado, o "recall" confina-se aos distritos eleitorais e se caracteriza por um impacto sistêmico de pouquíssima relevância.
No fundo, como se vê, o problema é de proporção. É a diferença entre avaliações judiciosas, bem proporcionadas, e avaliações insensatas, carentes do sentimento de proporção. Propostas de participação "direta" mal-proporcionadas darão ensejo a conflitos institucionais graves, desde logo por serem antitéticos os princípios "direto" e "representativo". Numa democracia apenas parcialmente construída, sem instituições respeitadas, é uma possibilidade real.
Em síntese, o que acima vai dito é o que escrevi em dois artigos anteriormente publicados neste espaço ("Tendências/Debates", 7 e 21/3). Em sua réplica o presidente da Ordem, Dr. Cezar Britto, ofereceu contra-argumentos substanciosos ("Tendências/Debates", 30/3), mas insuficientes para exorcizar o demônio da utopia radical e certos mitos de gosto populista que a meu ver influenciaram o trabalho da OAB no campo da reforma política. Lembrando minha antiga convicção parlamentarista -cortesia que me torna seu devedor-, o Dr. Britto estranhou meu ponto de vista contrário à revogação de mandatos nos termos do projeto, ao ver dele "muito mais democrática" que o mecanismo parlamentarista clássico da dissolução da Câmara por decisão do Chefe de Estado, seguida de nova eleição legislativa.
Ora, a expressão "muito mais democrática" parece-me trair a mitologia populista a que me referi. Sherlock Holmes diria que o ilustre presidente da OAB voltou ao local do crime. Eis sua tese: mais "povo", mais democracia; menos "povo", menos democracia.
Não vejo lugar nela para uma concepção institucional da democracia representativa; aliás, nem para o entendimento do sistema político como uma estrutura objetiva ("externa à consciência", como diria Marx).
Nessa visão, a própria indagação sobre o caráter democrático ou não de um regime passa a ser uma questão subjetiva: quem poderá respondê-la melhor que o "povo" -ou quem se arrogar o direito de falar por ele?
BOLÍVAR LAMOUNIER , 63, doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia (UCLA), é consultor de empresas e autor do livro "Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira" (Augurium Editora, 2005).

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