10 de dez. de 2007

Prerrogativa ou Privilégio? - 1

Por Eduardo Mahon é advogado em MT e Brasília.

O julgamento de Ronaldo Cunha Lima no STF causou verdadeira polêmica. A série de quatro artigos objeto da dedicação jurídica merece a atenção dos leitores, mais pela repercussão do tema nos tribunais do que pelos méritos do próprio articulista. Enquanto isso, os políticos fazem uma espécie de consulta gratuita, enquanto os movimentos sociais de combate à corrupção antevêem os problemas que terão.
Primeiramente, insta identificar que a prerrogativa de foro é comumente conhecida como “foro privilegiado”, o que é um grave erro da opinião pública, não só por carecer de técnica jurídica, como por um equívoco advindo da ignorância. Primeiro, que a prerrogativa de serem determinados gestores públicos julgados por tribunais superiores não é privilégio algum, já que a diretiva é de ordem constitucional e, quando o mandato acaba, o processo retorna à instância inferior. Segundo, que de privilegiado, nada tem. Mas isso dará pano para a manga e, no curso da série, trataremos disso detidamente.
Por que existe a prerrogativa de foro? A teoria ensina que a medida é saudável, a fim de afastar o mandatário político de exposições partidárias, em ações desfundamentadas de primeira instância. Caso o Presidente da República, por exemplo, pudesse ser processado em comarcas estaduais ou nas seções federais, seria muito mais eficaz inviabilizar juridicamente seu mandato e desestabilizar a gestão com denúncias vazias, ofertadas por alas políticas do órgão acusados e recebidas o mais das vezes por magistrados um tanto quanto partidários. Nem tão longe na hipótese: bastaria somente que um cidadão comum houvesse por bem processar o Executivo, pura e simplesmente. Mesmo sem base, seria um processo a mais para a gula da mídia e da oposição.
A concentração das ações numa única instância, seja qual for, é medida salutar para preservar não o político em si, mas o próprio mandato e a hororabilidade do cargo público, simplificando não só o acompanhamento processual num único tribunal, como também o exercício do direito de defesa. Quem se distancia do judiciário de piso não é propriamente o homem e sim o cargo, mas não num privilégio jurídico e sim numa prerrogativa da função que não se sustenta sem mandato. Por isso, é incorreta a assertiva de tratar-se de foro privilegiado.
Depois, precisamos nos deter na maior desvantagem do foro de função. Ao contrário do que diz o senso-comum, não é qualquer privilégio ser julgado por um tribunal. Ora, a defesa criminal que pode usar variados recursos nas mais diversas instâncias fica tolhida de uma delas ou de todas, dependendo do cargo que o acusado ocupe. Assim, prefeitos e deputados estaduais são processados junto aos Tribunais de Justiça: perdem o recurso de apelação criminal, um dos mais importantes, além dos embargos infringentes e recursos em sentido estrito. Governadores e Conselheiros do Tribunal de Contas são julgados pelo Superior Tribunal de Justiça: perdem o recurso sem sentido estrito, apelação e recurso especial. Deputados Federais, Senadores e Presidente da República são julgados pelo Supremo Tribunal Federal: perdem todos (todos, repita-se) os recursos possíveis da legislação processual ordinária. Pergunta-se: será vantagem?
A renúncia de Cunha Lima e a discussão posterior da manobra no STF revelou não haver qualquer vantagem processual com prerrogativa de foro. Isto porque a Excelsa Corte, condenado o réu, não aceitaria qualquer recurso, porque incabível. Julgado pelo colegiado máximo do Judiciário nacional, o acusado perderia pelo menos três instâncias recursais – o Tribunal de Justiça, o STJ e o próprio STF. Quando foi pautado o julgamento do ex-deputado paraibano, aí sim que se revelaram todas as desvantagens jurídicas do comando constitucional
Tanto a prerrogativa não é vantagem, que o ex-Governador da Paraíba, então Deputado Federal, preferiu renunciar ao mandato – o que não é pouco para um político – a fim de escapar da arapuca de ser processado na única e ultima instância. Evidentemente que tal expediente gerou um enorme desconforto na Corte Suprema e, na esteira, a opinião pública discutiu largamente a estratégia processual adotada. Os detratores da prerrogativa de foro, novamente ouvidos, aproveitaram o caso para apontar artilharias contra a diretiva constitucional, alfinetando o sistema jurídico de proteção a impunidade vigente no Brasil.
Por ora, cumprimos a primeira tarefa a que nos propomos – desmistificar serem os tribunais processualmente mais “benéficos” aos acusados que estão no exercícios de qualquer cargo. E não só desmascaramos essa falácia, como observamos um caso que contraria o senso comum. Resta saber, no entanto, se é válida a manobra adotada por Cunha Lima e, depois, o que fazer para que tais contornos estratégicos não mais se repitam. Daí os próximos artigos.

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