29 de fev. de 2008

No reino dos cartórios

Por Ralph J. Hofmann

Na década de setenta quebrei meus óculos numa viagem à África do Sul. Minha bagagem teimava em esconder os óculos de reserva. Na manhã seguinte pedi ao meu contato de negócios que me levasse a um oftalmologista, pois não trouxera minha receita de lentes.
O sujeito me olhou como se eu fosse louco. - Mas como, você vai num oftalmologista só porque está sem sua receita?
- E você não vai?
- Não, vou apenas no oftalmologista fazer “check-up”, medir pressão do globo ocular, ou quando alguma coisa mudou na minha visão. Normalmente num caso como o teu eu vou numa loja e um optometrista me coloca as diferentes lentes até achar as certas e me prepara os óculos.
Fiz o que o amigo sugerira, e de volta ao Brasil fui ao oftalmologista. Ele concluiu que os óculos adquiridos na viagem estavam certos, com um detalhe. Refletiam uma mudança de grau que eu sofrera.
No final da década de noventa, em Joinville, um vizinho de escritório, que tinha uma ótica, me contou que seu filho estava na ULBRA fazendo o curso de optometria, e que este tinha a duração de três anos.
Achei ótimo. Um progresso.
Nunca mais pensei no assunto, mas ha um ano atrás, agora em Porto Alegre, minha miopia tendo finalmente retrocedido e em compensação meu braço tendo encurtado para a leitura de letras pequenas, fui aviar uma nova receita. Ao voltar para buscar os óculos tive de esperar uma meia hora. Vi então um diploma de optometrista da ULBRA na parede da loja. Comentei com a balconista que então na próxima vez poderia passar diretamente na loja, sem problemas. Esta chamou a dona da loja, titula do diploma que me explicou que não. Os oftalmologistas haviam bloqueado a validade do diploma. Que a ULBRA trouxera o curso nos moldes dos cursos da Alemanha, que o currículo havia sido aprovado pelas autoridades, mas que após três anos de estudo praticamente só podia usar seus conhecimentos para verificar a correção da receita uma vez aviada.
Neste meio tempo já vi lentes de contato à venda em supermercados nos Estados Unidos e constatei que são muitos os países onde isto ocorre.
Mas aqui ha cartórios para muitas coisas. Em Porto Alegre as farmácias costumavam medira a pressão dos fregueses gratuitamente. Hoje precisam cobrar um taxa. Exigência do sindicato dos enfermeiros.
Em outros países, com um curso de três anos um técnico pode assinar uma planta para uma casa simples. É um curso para construtores, não engenheiros. Tem diploma e registro.
Aqui no Brasil um técnico em eletrônica, formado, com estudos práticos e teóricos, não consegue entregar certos trabalhos sem a assinatura de um engenheiro eletrônico, que não tem a mínima noção de como executar fisicamente o trabalho.
Temos ocasionalmente empresas de injeção de plásticos, processo essencialmente mecânico, com engenheiros mecânicos nos seus quadros em que ocasionalmente, como a matéria prima é plástico, são alvos de processos movidos pelos engenheiros químicos que dizem ser necessário um engenheiro químico responsável. Pífias desculpas para aumentar a base de emprego da classe.
E é este país cheio de cartórios que vai precisar formar nos próximos anos os milhares de profissionais que no caso da Coréia do Sul criaram a prosperidade enquanto o Brasil expandia uma economia com equipamentos obsolescentes.
Este é um de muitos paradigmas que recebemos por herança dos anos trinta que urgentemente terão de ser quebrados nos próximos anos se as indústrias forem crescer. Não adianta criar as escolas profissionalizantes se a atitude não mudar.
Por exemplo, na engenharia há pelo menos três níveis de capacitação necessários. Do técnico, passando pelo operacional até o engenheiro tradicional. Na Alemanha há mais dois. O mestrado e o doutorado. Cada categoria tem sua aplicação.
As indústrias sabem disto, e muitos cursos internos de indústrias formam excelentes profissionais. A carteira de trabalho com passagem por estas empresas quase equivale a um diploma.
Mas parece que no Brasil o governo só patrocina um tipo de técnico. O médico cubano, que sai clinicando sem passar pelos exames e confirmação de conhecimentos a que um médico de qualquer outra origem teria de se submeter para aqui clinicar, E sabemos que o curso médico em Cuba não corresponde ao curso brasileiro sendo pelo menos dois anos mais curto.
Mas é nessas horas que o governo acusa os médicos brasileiros de serem um cartório. Se por um lado eles o são em termos como o da optometria, por outro lado, o governo não os consulta para liberar toda uma classe de profissionais e arrombar as portas para agradar os cubanos. É uma prova de que em última instância tudo é muito rigoroso, até que se aperte os botões certos.

2 comentários:

ma gu disse...

Alô, Ralph.

Tiro certo. Pena que nossa mídia não dá mais atenção para este assunto, tão bem apanhado. Enquanto isso, vamos ficando com farmácias, onde os donos pagam uma quantia irrisória para um recém-formado, só para garantir a legislação cartorial. Entre as outras categorias que você citou. Onde um cartório passa de pai para filho, como se não fosse um serviço público, muito caro, aliás.

Ralph J. Hofmann disse...

Aliás o cartório é outro caso. Qualquer pessoa pode fazer um concurso e chancelar assinaturas nos EEUU