10 de mar. de 2008

Mais que síndrome de Estocolmo

Nunca entendi (ou engoli) direito a situação ou história da ex-refém das Farc Clara Rojas (foto). Achava tudo muito estranho. Ela não era alvo do seqüestro, estava em companhia da então candidata à presidência da Colômbia Ingrid Betancourt quando pediu para ser levada junto. Teve um filho de um dos guerrilheiros, mesmo sendo proibida a aproximação entre reféns e guerrilheiros. O comportamento de Clara ao ser libertada não foi parecido com o de outros ex-reféns. Tudo na história de Clara Rojas me parece nebuloso.
Ontem um refém libertado, o ex-senador Luis Eladio Pérez que esteve seqüestrado por seis anos, concedeu entrevista ao Estadão e deixou algo mais no ar:
Com tal relato, percebe-se como foi atípica a situação da ex-refém Clara Rojas, que ficou grávida de um guerrilheiro. Como os chefes deixaram que essa situação...
(Ele interrompe) Eu não acho que tenham deixado. Clara terá algum dia de contar a verdade ao mundo sobre o que aconteceu. Eu sei qual é essa verdade, mas não quero contá-la por respeito a Clara.
(Em leia mais, a entrevista completa)


'Quase enlouqueci e acabei falando com as árvores'
Por Ruth Costas para o Estadão

O ex-senador colombiano Luis Eladio Pérez não tem e-mail, nunca viu a cena das Torres Gêmeas desabando em Nova York nem entendeu quando, nas ruas de Caracas, algumas pessoas apontaram seus celulares para ele depois de pedir uma fotografia. “Onde estão as câmeras, eu me perguntava, assombrado.” O pesadelo de quase sete anos como refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) o impediu de presenciar os últimos acontecimentos mundiais, interrompeu sua carreira política e o privou do convívio com a família. De uma casa de campo perto de Bogotá, onde passou o fim de semana, Pérez falou ao Estado sobre a vida no cativeiro, a volta à liberdade, a vontade de ir à praia - “quem sabe ao Rio de Janeiro” - e as perspectivas de um acordo humanitário.
O sr. disse que as Farc o levaram para o Equador.
Nos primeiros anos de cativeiro, eles me mantiveram próximo à fronteira, mas ainda na Colômbia. Passei pelo Equador quando estava sendo levado para outro acampamento, onde estavam Ingrid (Betancourt, ex-candidata à presidência da Colômbia), Clara (Rojas, assessora de Ingrid) e os três americanos, porque havia uma operação militar no lado colombiano. Dormimos um par de noites perto do Rio San Miguel, no país vizinho.

Chegou a passar por território brasileiro alguma vez?

Não saberia dizer, mas acho que não. Quando eu e Ingrid tentamos escapar, em 2005 (após cinco dias na selva eles foram recapturados), estávamos perto da fronteira com o Brasil. Nosso plano era chegar ao território brasileiro.

Foi a vez em que o sr. esteve mais próximo do Brasil?
No que pude me dar conta, sim. Mas a verdade é que ficávamos completamente desorientados. Às vezes, nos colocavam em lanchas e saíamos por aí, por 20 ou 30 dias, de rio em rio. Em alguns acampamentos havia produtos brasileiros e conseguíamos sintonizar no rádio emissoras brasileiras, aí entendíamos que estávamos perto. Também era assim que descobríamos quando estávamos perto da Venezuela.

Como era a rotina do cativeiro?
Em acampamentos fixos havia uma rotina. Dormíamos e passávamos quase todo o dia acorrentados a árvores. Acordávamos às 4 horas, ouvíamos o programa de rádio no qual as famílias mandam recados para os seqüestrados e os guerrilheiros vinham tirar nossas correntes por 15 minutos para o asseio pessoal. À tarde, tentávamos passar o tempo lendo, escrevendo ou costurando. Também fazíamos exercícios como abdominais e barra. Quando estávamos no que eles chamam de “posições móveis”, andávamos dois ou três dias, com mochilas pesadas. Os pés ficavam em frangalhos, éramos picados por insetos e estávamos sujeitos a todo tipo de doenças: malária, leishmaniose e hepatite.

Quais os momentos mais difíceis?
Era muito ruim ficar acorrentado a uma árvore. Tinha uma mobilidade máxima de dois metros e me sentia humilhado sempre que refletia sobre minha situação. Também fiquei abalado quando anunciaram a morte de 11 deputados (também reféns). Eles estavam vivendo a mesma tragédia. Foi chocante saber que tudo acabou desse jeito, após anos de tanto sofrimento em que suas famílias, como a minha, tinham esperança de revê-los.

O sr. pensava na possibilidade de um resgate militar?
Por um lado, eu temia que houvesse uma tentativa de resgate, pois sabia que de uma situação como essa ninguém sai vivo. A guerrilha tem ordem para nos fuzilar. Por outro, o desespero era tanto que muitas vezes eu desejava que esta ação ocorresse. Não porque tinha esperança de escapar, mas porque preferia a morte rápida a continuar apodrecendo na selva.

Como era a relação com os guerrilheiros?
Muito ruim. Me sentia maltratado, humilhado, ameaçado e sabia que eles eram os responsáveis por isso, o que me impedia de ter qualquer simpatia. O contato era quase mínimo, porque mesmo quando havia um rapaz boa gente, disposto a nos dar um pão ou um cigarro a mais, os chefes estavam de olho, dispostos a repreendê-lo, para impedir cumplicidade com os reféns. Nos primeiros dois anos, estive sozinho com os guerrilheiros num acampamento e eles eram proibidos de falar comigo. Tinha um espelho em que fazia diversos movimentos e sorria para exercitar os músculos da face que estavam contraídos. Quase enlouqueci e terminei falando com as árvores.

Com tal relato, percebe-se como foi atípica a situação da ex-refém Clara Rojas, que ficou grávida de um guerrilheiro. Como os chefes deixaram que essa situação...
(Ele interrompe) Eu não acho que tenham deixado. Clara terá algum dia de contar a verdade ao mundo sobre o que aconteceu. Eu sei qual é essa verdade, mas não quero contá-la por respeito a Clara.

A morte dos comandantes das Farc Raúl Reyes e Ivan Ríos e a tensão entre Colômbia, Venezuela e Equador complicam o cenário para um acordo humanitário?
Continuo animado. Já falei ao presidente colombiano, Álvaro Uribe, da importância de Hugo Chávez no processo de negociação. Ele conseguiu mudar a mentalidade do secretariado da guerrilha, que está pensando mais em termos políticos. Com a morte de comandantes guerrilheiros, em outros tempos as Farc podiam reagir fuzilando um seqüestrado. Não foi o que aconteceu. As Farc parecem ter compreendido as mortes de Ríos e Reyes como “atos de guerra” e dão a entender que elas não impedem que se continue a buscar a paz e a libertação dos reféns.

Elas virariam um partido?
Essa pode ser uma opção. As Farc formaram o partido União Patriótica nos anos 80 após um acordo com o governo e, nos anos seguintes, mais de 6 mil militantes de esquerda foram mortos (por grupos de ultradireita). Hoje, a comunidade internacional, ONGs e entidades como a Corte Internacional de Justiça não permitiriam que isso ocorresse com tamanha impunidade.
A guerrilha está debilitada militarmente, como diz o governo?
Não acho que este seja o início do fim da guerrilha. Para mim, essas libertações unilaterais de reféns não são um sintoma de que a guerrilha está acuada, mas que tomou consciência de que não pode chegar ao poder pela via armada e, como hoje há grandes espaços políticos ocupados pela esquerda na América Latina, eles podem ter mais garantias para tentar a via política.

Qual era a relação dos guerrilheiros com Chávez?
Não sei, porque não tinha contato com o comando da guerrilha. Só uma vez estive com Mono Jojoy e Fabián Ramírez. O que posso dizer é que havia uma imensa admiração de todos por Chávez, por causa de sua posição antiimperialista.

Como foi recobrar a liberdade?
Eu voltei a viver ao abraçar minha família. É fascinante voltar a ver o sol, a ir para onde você quer, comer e beber o que quiser. Mas também me lembro muito dos companheiros que ainda estão presos. É difícil aproveitar a liberdade, comer bem, sem pensar que eles continuam na selva, acorrentados, comendo as mesmas porcarias, sofrendo todo o tipo de vexame enquanto eu aproveito o calor da minha família e amigos. Fico com a sensação de que deixei algo na selva e sinto uma obrigação moral de lutar para que esse sofrimento acabe também para eles.

O que o sr. fez nessa primeira semana em liberdade?
Estive mergulhado nas gestões para retomar um acordo humanitário. Falei com embaixadores, membros do governo e outros políticos. Ainda não consegui fazer tudo que pensava quando estava em cativeiro, como ir à praia, por exemplo, quem sabe Rio de Janeiro. Mas estou feliz, pois acho que estou cumprindo o meu dever.

Sente que o mundo mudou muito?
Terrivelmente. Não tenho celular ou e-mail. Meus filhos estão tentando me ensinar como funcionam esses aparelhos - DVD, MP3, MP4. Não tenho nem idéia, porque na selva eu só tinha um radinho, apesar de os comandantes terem equipamentos bem modernos. Tenho de ter aulas para aprender a usar direito a internet. Quando estava em Caracas, logo depois de ser libertado, as pessoas nas ruas me pediam uma fotografia e me apontavam celulares. Onde estão as câmeras, eu me perguntava, assombrado. Até que me explicaram que os celulares hoje têm câmera, vídeo, internet. Assombroso. Também ainda não vi as imagens do 11 de setembro de 2001. Vivi em Nova York quando era jovem e tenho um carinho especial pela cidade. Pedi a meus filhos para buscarem o vídeo para mim porque, até agora, não consegui entender direito como aconteceu.

5 comentários:

Abreu disse...

Que horror este relato!

Será que há dúvidas sobre o que fazer com traidores?

Ralph J. Hofmann disse...

Acho que os sequestrados devem se dirigir à corte internacional e exigir a prisão dos dirigentes da FARC por violação d edireitos humanos. Uma solução política com estes aí, sem que sejam submetidos a julgamento pelo lado de extorsão não serve para ninguém.
Lembrem-se dos sérvios no poder.

Anônimo disse...

Impressionante, meu Deus. O que as Farc querem é serem "promovidas" a uma Partido político, o que as legalizaria e, por meio de uma anistia como a do Brasil, poderem concorrer ao poder. Com a morte recente de seus líderes, Hugo Chávez as chefiaria e, assim, poderia cumprir o sonho bolivariano. Se as FARC forem anistiadas, Uribe será condenado pela comunidade internacional e a influência dos EUA banidas definitivamente da América Latina, a não ser do Chile e, me parece, do Peru. Mas... Condolezza está vindo aí e os idiotas estão todos com o c... na mão, pois, ao que parece estão incriminados. Pelo que li, o Brasil "ainda" não está, mas foi aberto só um computador. No entanto, sua ausência do Grupo do Rio deve-se a um telefonema de Condolezza.

ma gu disse...

Alô, Adriana.

Depois de ler um relato de agonia, me faço uma pergunta idiota:
Para que serve a ONU?

Anônimo disse...

A Clara era amiga da candidata a presidência e se apresentou como voluntária no seqüestro.Prisioneira, furou o couro com um guerrilheiro e teve um filho que virou novela americana "Ex seqüestrada 699".Exércitos Marselheses e Brancaleônicos se empenharam diuturnamente, doa a quem doer na libertação da refém.
Trágico, muito trágico, se não fosse comédia,e a Ingrid ainda aguarda um cavalo branco que surja à galope par levá-la aos campos de França.
Tomara que não fique na triagem de um aeroporto espanhol.