23 de jan. de 2008

Direito de Fugir?

Por Eduardo Mahon - advogado em MT e Brasília

Convém esclarecer a opinião pública sobre o conceito de “foragido”, tema central que autoriza decretos de prisão preventiva ou reforçam uma suposta necessidade de cautela estatal. Quando um cidadão pode ser considerado foragido pela Justiça? Apenas quando se subtrai do mandado de prisão? Por certo que não. Explico-me melhor: é que, enquanto o acusado está debatendo a decisão de segregação, resistindo à alegada injustiça, seja por meio de recurso, seja por meio de habeas corpus, está se assegurando da liberdade enquanto combate a ordem considerada injusta. A desobediência civil é diversa da penal, porque esta última seara guarda a particularidade da presunção de inocência e, por esta ótica, a resistência ao constrangimento é válida, legítima constitucionalmente, enquanto não subsistir uma condenação definitiva ou no curso da objeção da própria prisão.
É que o art. 366 do Código de Processo Penal foi alterado. Quando não encontrado o réu, suspende-se o processo com o respectivo prazo prescricional e, sendo o caso, decreta-se a prisão preventiva, estando presentes os requisitos cautelares insertos na lei. Contudo, quando este é encontrado, citado validamente, constitui advogado, enfrentando interrogatório e demais fases processuais, nada justifica afirmar que uma simples viagem ou ausência de um dos procedimentos judiciais levaria à decretação da segregação para a garantia da instrução criminal ou da aplicação da lei penal. Por que? Porque já está representado nos autos, fazendo-se presente por meio do defensor particular ou público, não se falando de desdém à futura eficácia processual de uma não menos eventual condenação definitiva.
Nesse passo, o Supremo Tribunal Federal vem assentando jurisprudência no sentido de entender que a simples fuga ou a resistência à prisão combatida não reforça em absoluto a justificativa para perseguir ainda mais o acusado. Diz o Ministro Marco Aurélio de Mello que a liberdade é direito natural do ser humano e a obstrução ao constrangimento nitidamente ilegal, ainda que não esteja inscrita em lei positiva, é imanente dos direitos da cidadania brasileira. Tanto que não há pena no Código Penal pelo ato “fuga” e sim o auxílio à fuga. A fuga do prisioneiro, em si mesma considerada, não é crime e se não está disposto no rol dos delitos, o fato da ausência também não poderá ser interpretado como agravante em nenhuma hipótese.
O julgamento de Salvatore Cacciola é paradigmático no STF. Inicialmente, cassada a prisão preventiva, afirma a Excelsa Corte que jornal não é fórum, jornalista não é juiz e muito menos o editor de jornal, um desembargador. Ou seja, a repercussão nacional e internacional do caso do italiano não poderá ser elemento fundamental da custódia que faliu em última instância. Ter dupla nacionalidade, não morar no distrito da culpa, ou ainda nenhum vínculo comercial ou social com a localidade, não são justificativas idôneas para amparar a prisão preventiva, igualmente. E, diante de uma eventual perplexidade da opinião pública por tamanha liberalidade, convém esclarecer que a cautela penal só pode permanecer em premissas concretas e não meras suposições.
Daí a estranheza quando a polícia facilmente intercepta o acusado com mandado expedido, não tendo sido encontrado anteriormente. Ora, como a polícia localiza tão fácil e rapidamente um foragido, estando ele na situação de esconderijo? Foi o caso de vários cidadãos presos em aeroportos, nas residências, nos estabelecimentos comerciais entre outros locais de convivência pública ou particular. Então, outra conclusão não pode emergir do raciocínio: não é pelo fato de haver mandado de prisão e o cidadão não ser momentaneamente localizado por oficiais de justiça que, necessariamente, encontra-se foragido. Não raro, ocorre justamente o contrário: se foragido estivesse, não seria encontrado no primeiro horário da manhã, dormindo tranqüilamente na própria casa ou trabalhando junto a outros funcionários, no trabalho.
Então, tais assertivas podem conduzir a conclusão radical que não existe o conceito de “foragido”? Não é bem assim. É claro que a resistência à prisão tem um limite temporal e processual, onde não pode objetar o acusado uma condenação definitiva, uma execução penal em curso ou o próprio acompanhamento processual por meio de representantes legais. Aí sim que, cotejando o caso concreto, pode ser denominado foragido o cidadão com um mandado contra si em aberto. Do contrário, embora a esteira do raciocínio não contemple anseio prematuro da sociedade pela eficácia prisional, sendo antipática tese, perfilhamo-nos integralmente a ela, peticionando sempre pela justiça. Não se trata de defender o direito de fugir e sim o de manter-se em liberdade.

5 comentários:

Anônimo disse...

Finalmente aparecem palavras sensatas sobre os tais "foragidos" que alimentam as manchetes da imprensa. Muito bom. Havia um professor do Largo de São Francisco que chegava a afirmar que "fugir" é até um direito e, mais que isso, um dever, já que se trata de ato praticado em defesa do maior direito do homem, a liberdade. Muito bom o artigo.

Anônimo disse...

Foragido tem apenas um direito: ser preso. Deviam ser detidos todos os infratores, inclusive os que geralmente ocupam Cadeia Nacional. Foragido nada desobedece, cumpre o seu natural direito de fuga (ou direito natural). Civilmente quem desobedece, salvo alimentos, quem assume depositar e guardar, falido (tiraram, tiram tudo do rico), recebe medidas civis. A cadeia fica perto dos delitos (multa, detido ou recluso) de pobre, sem QI e o corporativo. Culpa no civil, pode compensar, jamais no crime. Parece inadequado debater grandezas distintas. Tipo cada macado no seu galhinho... fazendos suas macacadas. Resisitir na esfera civil traduz ato de baderna (deixar de pagar tributo, etc), no penal, conforme o fato, pode ser crime (infrator, criminoso depois de condenado por julgado da Mulher de Venda e sem direito a qualquer recurso - ora, quem recursos, prestígio nem chega a usar recurso). Meio complicado. Repetir Thoreau fica mais perto de pessoa desajustada e dos invasores dos direitos alheios. Isso, o particular, pois o Estado constitui o contumaz violador das leis. Desobedece em grau permanente... Faltando cidadania, Estado organizado, com Legislativo e um setor judicial competente, fica muito ruim falar em desobediente. Na realidade, tem pouco foragido, falta setor policial eficiente nos Estados e Governo Federal. Somos, isso sim, muitos, milhares e milhares de refugiados e asilados... Privados dos direitos essenciais! O preso, encerrando, nada pode sofrer por fugir, salvo se deteriorar bem material ou ofender alguma pessoa na fuga. Acabou, faltou papel.

Promotor de Justiça disse...

O “direito de fugir”

Alexandre Magno F. M. Aguiar
Procurador do Banco Central em Brasília. Professor de Direito Penal, Processual Penal e Administrativo na Universidade Paulista e no curso preparatório Pró-Cursos.
Editor do site: www.alexandremagno.com
Introdução

A prisão do ex-banqueiro Salvatore Cacciola (que deixou o Brasil em 2000 sem nenhuma restrição da Justiça) reativou a polêmica sobre o “direito à fuga”, que é visto com bons olhos por alguns operadores do Direito. Neste artigo, procuraremos demonstrar o absurdo em que consiste o simples debate desse tema.

A declaração do ministro

Sobre a questão, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, declarou: “É direito natural do homem fugir de um ato que entenda ilegal. Qualquer um de nós entenderia dessa forma. É algo natural, inato ao homem”.

Acreditamos que o ministro fez uma confusão ao tentar justificar sua equivocada decisão a favor da concessão do habeas corpus a Salvatore Cacciola em 2000. Não existe "direito natural à fuga". Aliás, a expressão "direito natural" transmite a idéia de um conjunto de normas que, idealmente, valeriam para todos os povos. Seria o Direito mais justo possível dentro das possibilidades humanas.

Obviamente, não podemos considerar como justa ou correta a atitude de alguém que, respondendo a um processo, escapa da ação da Justiça. Ora, se há o direito do Estado de prender, de modo provisório ou definitivo, não poderia haver o direito do réu ou condenado de fugir, pois o exercício desse direito significaria a anulação do outro. O ministro referiu-se, com correção, ao fato de que qualquer pessoa, quando presa ou ameaçada de prisão, tem o ardente desejo de preservar ou reconquistar sua liberdade. Isso é plenamente compreensível; mas, de maneira alguma, é justificável em caso de prisão lícita. Utilizando desse mesmo raciocínio, podemos dizer, então, que qualquer desejo de alguém é justificável, basta que se queira.

Para ilustrar o raciocínio: o homicídio e o estupro são dois crimes encontrados em qualquer sociedade humana. Por isso, podemos considerá-los “naturais e inatos” ao ser humano? Alguém, por acaso, defenderia que essas condutas tornam-se legítimas por isso? Em um estado de direito, a discordância da decisão judicial é sempre legítima, mas deve ser exercida dentro dos termos previstos em lei, ou seja, ajuizando as ações e os recursos necessários.

A declaração do ex-procurador-geral da República

Cláudio Fonteles, ex-procurador-geral da República, ao contrário, declarou-se perplexo diante da expressão “direito à fuga”. Seria esse sentimento exagerado? Infelizmente, não. Cláudio Fonteles está repleto de razão. Mas, apesar de absurda, a expressão utilizada pelo ministro pode ser entendida dentro de uma lógica peculiar. Primeiro, a notória incapacidade da maioria das pessoas de admitir seus erros. Ora, decisão que decreta a prisão provisória ou que concede o habeas corpus é, de certa forma, uma aposta, ou, em termos mais científicos, um juízo de probabilidade. Pondera-se a respeito da necessidade de acusado ficar preso ou solto naquele momento do inquérito ou do processo. Como qualquer decisão humana, essa ponderação pode revelar-se incorreta. É inevitável que isso ocorra vez por outra com juízes que decidem diariamente esses assuntos. Infelizmente, não houve humildade suficiente para admitir esse fato.

Outra explicação é um fenômeno que ataca quase toda a doutrina e boa parte dos magistrados brasileiros: o "laxismo penal", ou seja, a crença de matriz esquerdista que coloca o criminoso como vítima da sociedade, e que, por isso, deve ser protegido ao máximo. Inverte-se a lógica dos fatos. Quem, voluntariamente, cometeu um crime atacou bens essenciais do indivíduo e da sociedade, e deve ser punido por isso. É ultrajante querer "transformar" o criminoso em vítima, e a sociedade, que é a vítima, em criminoso. Parecem defender que ninguém seja responsabilizado por nada e, ainda, que se dê total vazão aos desejos, custe o que custar. Essa ideologia, ao retirar a responsabilidade individual do criminoso, estimula a criminalidade, pois fornece uma justificativa para seus atos. Na realidade, ela é, em boa parte, responsável pela crescente criminalidade em que vivemos.

Como justificar a prisão preventiva

O Código de Processo Penal, no art. 312, prevê expressamente as hipóteses em que é permitida a prisão preventiva. Entre elas, estão a garantia da ordem pública e a segurança da aplicação da lei penal. O primeiro caso refere-se ao acusado que, por ser de alta periculosidade, precisa ficar detido durante o processo. A segunda refere-se ao acusado que tenta fugir para escapar de uma provável sentença condenatória. Portanto, sua previsão legal possibilita a decretação de prisão preventiva nesse caso.

Por outro lado, é necessária a compatibilização entre esse dispositivo e a Constituição Federal, que prevê o princípio da presunção de inocência. Ora, a regra é que o "inocente" deve ficar solto, e somente ser preso se houver absoluta necessidade. O problema é que boa parte dos juízes entende a prisão preventiva como uma antecipação da pena, o que é totalmente vedado pelo princípio da presunção de inocência. Isso significa a banalização da prisão preventiva como uma forma de dar uma satisfação rápida à sociedade. Para se ter uma idéia, em 2004, 33% dos presos no Brasil eram provisórios (dados do Ministério da Justiça), enquanto, em alguns países anglo-saxões, a taxa é de apenas 2%!

Será que, admitindo o “direito de fugir”, não estaríamos reconhecendo a precipitação ou a ineficiência do Judiciário? Como visto anteriormente, não se pode considerar a existência de um "direito à fuga". Porém, é possível que alguém preso por demasiado tempo sem um julgamento pode se sentir injustiçado, o que o induziria a uma eventual fuga. Há registro de prisões preventivas que duram anos, enquanto que a jurisprudência a admite apenas por um período máximo de 81 dias.

Precipitação e ineficiência são duas fases da mesma moeda. Geralmente, o processo penal é tão demorado que o efeito intimidatório da pena pode tornar-se nulo. Um exemplo aberrante foi de um julgamento por tentativa de homicídio que ocorreu 40 anos depois do crime! Todos os envolvidos no crime, exceto o réu, já estavam mortos! Assim, a precipitação é uma maneira canhestra de compensar a ineficiência. Considerando que a coisa julgada no processo penal é quase um mito, de tão rara a sua ocorrência, os juízes antecipam a execução da pena, em um claro desrespeito à presunção de inocência, para, de alguma forma, dar satisfação à sociedade. Isso acontece de forma gritante nos casos conhecidos como "criminalidade de massa", normalmente crimes contra o patrimônio cometidos por pessoas de menor poder aquisitivo. Portanto, é nítida a relação entre a ineficiência do sistema penal e o desrespeito aos direitos dos réus. Quanto pior for o funcionamento da Justiça, mais os juízes sentir-se-ão tentados a utilizar medidas arbitrárias para satisfazer a opinião pública.

Um antecedente perigoso

Decretar a prisão e conceder a liberdade a alguém são atos de extrema responsabilidade que devem ser muito bem aferidos caso a caso. O juiz, como ser humano, obviamente não está isento de erros, mas deve utilizar critérios bastante rigorosos para diminuir esse risco. Exemplo bastante recente da falta de critérios foi a libertação de uma pessoa submetida a medida de segurança que, posteriormente, veio a violentar e matar diversas crianças na Serra da Cantareira.

O arcaísmo do Código de Processo Penal

O CPP é arcaico porque foi promulgado durante uma das mais sangrentas ditaduras de nosso país, o Estado Novo, de Getúlio Vargas. O réu deveria provar sua inocência e, normalmente, respondia preso ao processo. Tratava-se, na prática, de uma presunção de culpa. O CPP também é arcaico porque seus dispositivos tornaram-se inadequados para os tempos atuais. A disciplina da prisão processual, em geral, é confusa e lacunosa. Os dispositivos que regem a fiança, por exemplo, estão de tal forma desatualizados que tornam de uso bem raro esse valioso instituto. O CPP também não foi adequado às novas tecnologias que poderiam diminuir a necessidade de prisão preventiva, como os braceletes eletrônicos, utilizados na Inglaterra e nos Estados Unidos para monitorar os réus. Além disso, não foram previstas medidas cautelares simples, como a retenção de passaporte e a produção antecipada de provas.

Como adequar o CPP à ordem constitucional

Conta-se que um promotor, conhecedor do processo penal, argumentou a um velho juiz que este utilizava um artigo do CPP contrário à Constituição de 1988. Então, o juiz respondeu algo como: "O senhor quer que eu troque o CPP, que utilizo há 35 anos, pela Constituição, que tem apenas 19 anos?" Esse caso ilustra o fato de que muitos juízes se furtam ao seu dever de interpretar a lei de acordo com a Constituição, e não o contrário. Se não houver interpretação compatível com a Lei Maior, a norma deve ser considerada como revogada. Esse exercício hermenêutico não é simples e, às vezes, amedronta os julgadores. Esse é o controle difuso de constitucionalidade.

A adequação do CPP à Constituição de 1988 pode ser feita também pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento de ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Nesse caso, deveria fazer uma interpretação conforme a Constituição, ou considerar a norma como não-recepcionada. Em tempos de quase total descaso do Legislativo com as questões processuais penais, esse controle de constitucionalidade, chamado de concentrado, torna-se cada vez mais relevante.

As conseqüências da aceitação do “direito à fuga”

Quando um ministro do STF considera que a fuga de um réu preso, ou mesmo de um condenado, é um direito dele, temos um fato gravíssimo que consiste numa mensagem cada vez mais ouvida pela sociedade: o crime compensa, ou seja, seus riscos são tão pequenos que vale a pena cometê-lo. A chance de ser pego é mínima, sendo que, no decorrer do processo, é-lhe permitido mentir e utilizar expedientes protelatórios que podem ter, como conseqüência, a prescrição da pena. Na eventualidade de ser condenado, pode, ainda, não ser preso por ausência de vagas no sistema prisional. E agora, caso o fosse, poderia fugir, pois este seria um "direito" seu! Trata-se de uma demonstração efetiva do "laxismo penal" em ação!

http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/29676

Promotor de Justiça disse...

Direito x dever
Fugir de uma prisão decretada não é direito de ninguém

Surpreendeu a muitos a declaração feita recentemente pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, por ocasião da prisão em Mônaco do banqueiro Salvatore Cacciola, condenado no Brasil a 13 anos de prisão. Segundo o ministro "o acusado tem o direito natural de fugir". A frase foi divulgada por quase todos os principais veículos da imprensa nacional. Mas será que é mesmo direito de todo acusado, em face de quem foi legalmente decretada e executada uma prisão, fugir?


A todo direito corresponde um dever. Esse dever pode tocar tanto a um sujeito individualmente considerado quanto a todos indistintamente. Para cada direito que a ordem jurídica reconhece a um indivíduo, há, para todos os demais indivíduos, o dever correspondente de respeitar esse direito. O exercício regular de um direito é um ato lícito, e a ninguém é dado opor-se ao exercício regular desse direito. Assim agindo, pratica — aquele que se opõe ao exercício regular do direito — um ato ilícito. O senso popular tem pleno apoio na dogmática jurídica: "o direito de um acaba onde começa o direito do outro".



Em formula sintética, pode-se dizer que a licitude de qualquer ato jurídico é reconhecida pelo ordenamento jurídico de cada país — sua Constituição e suas leis. Mesmo que se afirme que, ao legislador, cumpre apenas o dever de positivar os direitos que, em verdade, preexistem ao ordenamento, por serem naturais do homem (como afirmavam os jusnaturalistas), é fato insuperável que, num Estado Democrático de Direito, esses direitos hão de estar declarados, reconhecidos, ainda que de forma implícita nos textos escritos, extraído de suas normas fundantes ou de seus princípios.



Não é possível que um ato seja, ao mesmo temo, e dentro de um mesmo ordenamento, lícito e ilícito. Ou um ato é licito, porque o ordenamento assim o reconhece (expressa ou implicitamente), ou é ilícito.



Pois bem: se, quando decretada uma prisão, fosse direito de todo e qualquer acusado (ou investigado, ou condenado) fugir, não seria dado a ninguém, nem ao Estado, opor-se ao exercício regular desse direito. A ação do Estado que prende (ou que impede a fuga), seria sempre ilícita. Num ilogismo inevitável, ter-se-ia que toda e qualquer prisão no Brasil é ilegal.



Afirmar que a fuga é um direito de qualquer acusado é afirmar que a fuga é um ato lícito. Ocorre que, no Brasil, segundo nossa Constituição e nossas leis, a fuga é um ato ilícito, com sanções que vão além do pronto restabelecimento da prisão daquele que fugiu.



De fato, o Estado tem o direito — melhor dizendo, tem a função ou o poder-dever - de, existindo a necessidade concreta de uma prisão, efetuá-la. Essa necessidade deve estar documentada numa decisão judicial devidamente fundamentada. Não à toa, o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 estabelece que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente".



Pois bem: havendo decisão judicial — que mantém uma prisão em flagrante ou decreta a prisão de alguém —, é direito (poder-dever) do Estado executar, cumprir essa decisão, prendendo o acusado, investigado ou sentenciado. O mandado, a ordem de prisão, nada mais faz que materializar esse direito ou poder-dever do Estado. Se ao indivíduo não toca um dever específico de "se entregar" — é o Estado que tem o dever de prendê-lo —, igualmente não há para o indivíduo o direito de resistir a essa prisão, seja com violência ou ameaça, seja com a simples fuga. Muito pelo contrário, uma vez preso (aqui a palavra prisão tem o sentido de apreensão ou captura), o indivíduo tem o dever de acatar a ação do Estado, não praticando nenhum ato que caracterize um desrespeito a esse dever de apreendê-lo e de mantê-lo sob custódia.



A eventual violação ao poder-dever do Estado de efetuar uma prisão legal caracteriza um ato ilícito que tem como sanção imediata a recaptura daquela que foge, independentemente de que seja proferida uma nova decisão. Mas não é essa a única sanção.



A Lei de Execuções Penais é clara ao estabelecer a fuga como falta disciplinar grave (artigo 50, II, da lei 7.210/84). Vale ressaltar que a LEP se aplica tanto ao condenado por decisão transitada em julgado quanto ao preso provisório (artigo 2º, parágrafo único, artigo 39, parágrafo único, e art. 44, caput e parágrafo único, todos da lei 7.210/84). Fugir é uma infração disciplinar do preso — um ato ilícito, portanto — punível administrativamente na forma dos artigos 53 e seguintes da Lei de Execução Penais. E o Código de Processo Penal prevê a fuga como causa para o quebramento ou perda da fiança e para a decretação de revelia do acusado (artigos 327, 328, 341, 343, 344 e 367 do CPP). Em casos mais graves, quando há uso de violência ou ameaça, a oposição do indivíduo a sua prisão pode caracterizar até mesmo um ilícito de natureza penal: o crime de resistência (artigo 329 do Código Penal) ou o crime de evasão mediante violência contra a pessoa (artigo 352 do Código Penal). A fuga, como se nota, é um ato ilícito, juridicamente reprovável, embora nem sempre criminoso, e que pode ser sancionado por diversos meios, todos expressamente previstos em lei.



Com a afirmação de que "a fuga é um direito natural", talvez se queira referir à condição imanente a todo ser humano de "busca da liberdade". Mas nem toda a liberdade é lícita. Razões há para que, em determinadas situações concretas, conforme sedimentado em nossa Constituição e em nossas leis, alguém deva ser privado de sua liberdade de ir e vir. E, uma vez preso, não tem o direito de fugir.



Fugir (de uma prisão legalmente decretada) não é direito de ninguém, embora a liberdade de ir e vir seja um desejo imanente a todo ser humano. E de desejo a direito vai uma grande diferença.



Por Bruno Calabrich, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, ex-coordenador do Núcleo Criminal do Ministério Público Federal no Estado do Espírito Santo e procurador da República em Sergipe - Revista Consultor Jurídico, 2 de outubro de 2007

Conjur 02/10/07

Anônimo disse...

Palmas (sem ser de Tocantins)! Olha, nenhum homem tem que aceitar como absoluto ato do Estado o recolhimento em uma enxovia, sobretudo com o aparelho judicial competente, subserviente (casos esquisitos de moeda) em funcionamento. Fosse tudo perfeito (deuses nacionais do Direito), ser livre tem um toque inato ao ser homem, enraizado no desejo cosmopolita. Ser condenado difere de morrer para o mundo e renunciar ao direito natural de fugir, procurar ocultar a pessoa de nova captura para novos dias nas masmorras aparelhadas(?), com estrutura do setor executivo das penas - juiz e etc que nunca leram um livro de psicologia criminal, sociologia criminal, antropolgia, filosofia "de consumo", etc. Fugir nunca vai constituir delito. Pode acarretar tratamento disciplinar mais perverso no retorno (faziam isso com Pappilon), conforme o local e o agente que faz a captura em segundo momento. A fuga depois do crime tem um sentido de impedir a lei ser aplicada, tolher a pesquisa de culpa-dolo, perturbar a ordem coletiva com o meliante em liberdade, autorizando a preventiva (apesar de que se prende por ato vingativo, como foi tomado para modelo Maluf, um homem de setenta anos; os advogados sabem manobrar a lei penal; silenciar traduz direito constitucional, cada um suportando os seus efeitos). A fuga depois de condenado, o anseio incontido de ser livre, de voar como as aves, apesar do fardo que o veredicto (muitas vezes de um juiz desqualificado no estudo, na moral, na lei) recomenda o "fez, deve pagar", mas a PENA TEM EM GRAU MODERNO, COMO ANIBAL BRUNO RECOMENDOU NA QUADRA DE 1950, LYRA, ETC) um sentido mitigado, escapa ao absoluto de ficar isolado do mundo para sempre (sancionar diverge de perpetuar o penar). Em outra latitude ou platitude, o grande sentido da pena, algo que parece irreal em um bom operador - honesto, honrado, sem moedas - do direito no Brasil, repousa no cogitar, alberga o verbo REEDUCAR (Soller: quanto vale o homem que nada vale), reintegrar o homem no seio social (a pena deixou de ser castigo, supliciativa faz muito tempo, recuando ao momento de Beccaria, Bindig, etc). O Estado com ignorantes nos Poderes, homens incompetentes, fosse o setor judicial independente e os foros que privilegiam terminassem as contendas criminais, mas faltando corpo curativo, a turma da sociologia, o grupo dos pedagogos, os educadores, os pregadores, o homem preso definitivamente fica abandonado, salvo quando tem o que tem aquela pessoa que a sua pessoa pensou. Desse modo, nada que viola qualquer preceito merece aplauso, mas nada pode inibir no homem, sob pena de por via transversa ferir o direito individual de liberdade - anelo incontido em todos os povos, o impulso de ficar livre. Foi essa a linha de algum Ministro, inclusive seguindo o que preceitua Tribe ao falar sobre a Primeira Emenda (ampla liberdade e amplo direito), Zippelius ao apontar o Estado deficiente, tirano por suas leis no nascedouro que desigualam. Logo, sem debate, fugir pode ser muito feio para um homem com a moral de um Santo e o homem comum, mas traduz algo que vive, mora, dorme, fica entranhado no interior do bipedes sine pennis - confira a frase do homem do Banquete. Leituras agradecidas, mas conhecidas (quem desconhece a "modernidade" do Marco, inclusive retirando estupro de uma menor de 14 anos, suscitando consentimento, rompendo com a literalidade da lei). O Blog tem outro fim, nada de provar o certo, apenas seguir conversando, se sempre entendi a forma como recebem este que vem no anonimato. Finalmente, fugir vai censurado por todo mundo, mas faz parte do homem essa loucura de ser livre, mesmo depois de ter praticado um erro e respondendo pelo seu efeito segundo os poderes "sacrossantos" dos homens da Toga do Brasil. O evangelho da Lei difere muito, observe atento, do evangelho dos julgadores (sempre tem que se pensar no atire a primeira pedra). O Dr. Promovedor deve buscar os bons conceitos de Justitia, mesmo porque o acusador deve agir sem o entusiasmo de um carrasco - pena que foge do reeducar toca ao limite inominioso da tortura no encarceramento. Liberdade, dizia Moreno, para tudo e para todos, Dr. Promotor, exceto para os maus e os malfeitores. A frase tem sua grandeza e em suas linhas um leitor jamais encontra que o homem tem que perder o desejo de ser livre, sempre e sempre (o Estado tem que capturar e evitar que cometa atentado contra a pessoa humana - preso, mas ser humano). Bom, lugar de infrator condenado todos sabem, ruim parece contemplar o universo de infratores em liberdade e ironizando o corpo social. Desculpe, venci os toque... Faltou papel, felizmente. Meus cumprimentos, temos que moralizar o Estado, formar homens. Nenhum entidade ou setor institucional pode produzir os seus bons frutos em uma sociedade se deixar ao lado homens dignos e competentes, totalmente integrados na tarefa confiada, para que recebam o repespeito geral e geral solidariedade. Punir, sim, mas reeducar o homem (fugir, um ato indelicado e pouco disciplinar, mas corre no sangue o clamor de liberdade). Cumprimentos pelo texto e pelos elementos fornecidos para leitura.