5 de mar. de 2007

FREUD E OS BONS LIVROS

Por Laurence Bittencourt, jornalista

Quando, Hugo Helller, amigo pessoal e participante dos famosos encontros com o grupo das quartas-feiras, grupo esse que iria fundar depois a famosa Sociedade Psicanalítica Vienense, pediu (através de uma carta) a Freud para indicar numa lista “dez bons livros”, isso em 1906, o comovente da história não foi nem o pedido em si, e sim, a resposta, também por carta, de Freud.
Freud foi um missivista compulsivo e regular. Odiava quando alguém demorava a responder, já suspeitando alguma motivação “inconsciente” por trás. Mas a resposta de Freud ao pedido de Heller é qualquer coisa de genial, como tudo que ele fez, no nível da produção textual.
Em seu pedido (Heller época era um editor e livreiro de Viena famoso, foi o primeiro editor da revista Imago e também da Revista Internacional de Psicanálise) para Freud indicar “dez bons livros”, não houve solicitação para maiores explicações sobre o fato, Freud no entanto, respondeu a indicação, mas não deixou de refletir sobre o fato de Heller dizer “dez bons livros” em vez de “as dez maiores obras da literatura mundial”, nem oferecer maiores explicações para o pedido. Ao iniciar sua resposta falando exatamente sobre esses dois pontos, Freud acrescenta: “com isso o sr. me encarrega não apenas de escolher os livros, mas de interpretar seu pedido”. O psicanalista falou mais alto.
Freud percebe por trás do pedido do editor e amigo, que há uma acentuação sobre a palavra “bons”, e que tal predicado poderia significar livros que nos relacionamos do mesmo modo que com “bons” amigos, acrescentando em seguida de forma peculiar, “aos quais devemos nosso conhecimento da vida e da nossa concepção do mundo”. Incrivelmente Freud remete e associa a palavra “bons livros” a um parentesco, a uma similaridade com “bons amigos”, cujo contato nos proporcionou prazer e de alguma forma nos ensinou e ajudou em nosso conhecimento e concepção da vida e do mundo.
Mas ele, Freud, não para ai em sua resposta e “interpretação”. Afirma que “bons livros” assim como “bons amigos” além de ter essa função de prazer, de dívida e conhecimento, e cujo laço de amizade nos proporcionou prazer, leva inevitavelmente a falarmos bem desse “amigo”, isso “diante dos outros”, e, acrescenta o pai da psicanálise “sem que essa relação suscite um temor reverencial, uma sensação da própria insignificância diante da grandeza alheia”. Ao dizer essa frase, Freud faz a indicação dos “dez bons livros”: Cartas e obras (Multatuli); O livro da jângal (Kipling); Sobre a pedra branca (Anotole France); Fecundidade (Zola); Leonardo da Vinci (Merejkovski); A gente de Seldwyla (Gottfried Keller); Os últimos dias de Hutten (C. F. Meyer); Ensaios (Macaulay); Pensadores gregos (Gomperz) e Esboços (Mark Twain).
A ultima parte da carta-resposta de Freud não é inferior ao seu inicio. Após nominar os “bons livros”, tal qual “bons amigos”, o “velho sábio vienense” diz que não sabe o que Heller fará com a lista, acrescentando que a ele, Freud, a lista parece um tanto estranho, e que por esse motivo é difícil abandoná-la com facilidade sem acrescentar alguns comentários.
A palavra “estranho” pode parecer ao leitor apressado, um tanto desconexo, mas não é. E por um motivo. O afeto que sentimos por alguém que temos como amigo dispensa racionalizações, e nas escolhas, como no caso da lista dos livros, ela nos chega como num processo de análise (como diria Freud) sem maiores censuras e assim deve ser. Os grandes amigos como os bons livros são escolhidos como que seguindo a uma compulsão interior, contra o qual não podemos nos defender. Isso serve também para outras escolhas na vida, que segundo o Pai da psicanãlise também não segue a racionalizações e sim a motivações interiores que certamente não entendemos ou compreendemos, mas apenas devemos obedecer.
Freud faz seus comentários finais sobre o porque “aparentemente” de sua escolha ter recaído sobre tal obra e não outra de um mesmo autor, por exemplo. E diz que poderia ter selecionado outra obra do mesmo autor, como por exemplo o Docteur Pascal, de Zola, acrescentando a guisa de ilustração: “o mesmo homem que nos presenteou com um bom livro muitas vezes nos deu também de presente vários bons livros”. No caso de Multatuli, Freud diz que teve de excluir as obras de caráter puramente poético justificando que o pedido “bons livros”, assim como no caso de C. F. Meyer, o “bom” teve que prevalecer sobre o “belo”, a “edificação” sobre o prazer estético.
Ao ler a resposta de Freud, nenhuma definição me pareceu mais clara, entre o “bom” enquanto adjetivo que exprime um atributo moral, e não uma qualidade estética. Freud sabia perceber num simples pedido uma motivação maior por trás e tirava disto toda um ensinamento de vida. Permanece um divisor de águas na cultura ocidental e na civilização humana. A carta-resposta de Freud é tão interessante que motivou o livro “Os dez amigos de Freud”, publicado em dois volumes, do embaixador e historiador Sérgio Paulo Rouanet, onde ele analisa cada um dos livros e seu autor, indicados na lista de Freud. Fica como uma “boa” recomendação de leitura.

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