19 de nov. de 2007

A individualidade mantida

Por Laurence Bittencourt Leite, jornalista

“Abril é o mais cruel dos meses”. Esse é certamente um dos versos mais conhecidos e celebrados entre aqueles que cultivam e gostam de poesia. A frase que abre “A terra desolada” de T. S. Eliot, de 1922, pode ser comparada como contraponto à outra frase monumental, mas não tão conhecida, de outro poeta também de língua inglesa, não moderno, e sim romântico, entendam, Dylan Thomas, ao dizer sabiamente: “não entres nessa noite acolhedora com doçura”. Á parte a beleza do verso, é de uma solidez impressionante.
Lembrei-me dessas frases quando lia um ensaio recente sobre Miguel de Cervantes e seu imortal romance, que para muitos dá inicio ao romance moderno, “Dom Quixote de La Mancha”. Sim, inicia o romance moderno, porque até então o que tínhamos era os chamados romances de cavalaria, justamente contra quem irá se opor Cervantes ao escrever o seu Quixote.
Incrível que poucos críticos e intelectuais tenham percebido que o Cavaleiro da Triste Figura na verdade, é um intelectual (por falar nisso, tal qual Hamlet, o personagem) que de tanto ler termina por assumir no real, a condição da fantasia. Trata-se de uma grande metáfora para o mundo moderno, e o deslocamento do artista ante o mundo de massas que começava a surgir. Se ao final do livro Dom Quixote retoma a lucidez, nem por isso, o faz por inteiro. A chama do “rebel without a cause” permanece mesmo sob a volta triunfal da razão. E o que conta ao final, são os delírios do Cavaleiro enfrentando inconformado, como um anti-herói moderno (opondo-se justamente ao herói “verdadeiro” escrito nas páginas dos Romances de Cavalaria), os moinhos gigantes e lutando contra as injustiças do mundo em nome de uma causa que ninguém sabe qual é, e que difere da “causa” de Sancho Panca que é a conquista da ilha prometida pelo seu amo.
A obra de Cervantes é uma sátira ao universo medieval, mas pode ser compreendido como a primeira grande critica ao conformismo do mundo material que o artista moderno irá ver surgir, retirando-lhe a “aura de grandeza” de que falaria depois outro rebelde, Walter Benjamim.
A luta contra o mundo massificado se tem inicio com Cervantes através de Dom Quixote, pode encontrar o seu ponto de maturação na obra genial de um dos avatares da beat generation, Jack Kerouac, em “On the Road” (1957), traduzido no Brasil como “Pé na estrada”. Tanto no livro de Kerouac quanto em Quixote (os puristas detestarão esse tipo de aproximação) é possível discernir um apelo a um mundo perdido, ou que está se perdendo, o que também pode ser visto ou traduzido como um desejo de retorno a um paraíso perdido. No entanto, como bem percebeu o critico Ivan Junqueira, e com o qual concordo em gênero, número e grau (por isso estou aproximando Cervantes de Kerouac), ao pensar as paginas de “On the Road”, e lamentando o engano dos críticos, afirmou: “o torrencial e impetuoso impulso de vida que brota de suas páginas nada tem de nostálgico, lembrando antes o furioso e ensolarado vitalismo nietzscheano, avesso não apenas aos sistemas de nossa época, mas a própria idéia de sistema como método destinado a apreender a realidade”.
Não há duvida que Junqueira tocou com clareza na raiz metafórica e estética do hoje, podemos dizer isso, clássico “On the Road”. E dos autores citados acima, com exceção de Eliot, todos os demais podem ser colocados em paralelo com os românticos e sua visão de mundo.
Para ser mais explicito e tentando alargar os horizontes, diria que toda a prosa moderna, em especial a partir do movimento romântico (anticapitalista por natureza), é auto-referente, autobiográfico se quiserem. Não só a prosa, mas a poesia moderna também, bastando citar Rimbaud, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, ou o próprio Allen Ginsberg, para ficarmos nesses.
A idéia da prosa moderna, em alguns casos de forma deliberada e em outros de forma não consciente, foi romper com o herói clássico e medieval, criando uma espécie de anti-herói na figura de um protagonista psiquicamente conflitado, o que pode ser visto na obra máxima de Cervantes, ou em autores como Dostoievski, o próprio Mark Twain, desaguando em James Joyce e Gertrude Stein, até atingir em cheio em “On the road” de Jack Kerouac. Se a tragédia clássica perde todo seu vigor (segundo George Steiner no livro “A morte da tragédia”) com a entrada em cena do mundo industrializado, parece bastante plausível pelo menos como proposta de pesquisa, perceber que a literatura moderna toca e rouba esse espaço conflituoso tão bem expresso em autores antigos como Sófocles, Ésquilo e Eurípides. Se há exceções como querem alguns, em Tchecov, Ibsen, O´Neill, ou mesmo Nelson Rodrigues, é inegável a relação direta entre o espírito da tragédia clássica com parte da literatura contemporânea, daí o ponto de ligação entre Cervantes, Dylan Thomas e Kerouac.

2 comentários:

Ralph J. Hofmann disse...

Laurence

Procure "The Quest" do Robert Elegant e considere ""As neves do Kilimanjaro", fora alguns dos primeiros livros do Asimov.

É tudo um Quest. Lembro também Tolkien e J.B. Priestley, O sujeito cai na estrada e de alguma forma acha um Quest.

Anônimo disse...

Valeu mais uma vez Ralph.