21 de dez. de 2007

Kafka

Por Laurence Bittencourt Leite, jornalista

Quando li pela primeira vez a biografia de Kafka escrita por Ernst Pawel em 1990, ainda tisnado por um ódio ingênuo tremi de raiva. A imaturidade nos cobra um preço imenso. E Kafka na verdade foi (continua sendo) propriedade privada de vários biógrafos. Max Brod, um dos poucos e raros amigos do escritor foi o primeiro a escrever sobre a vida do romancista depois de sua morte, sendo exatamente aquele que o salvou do esquecimento e o lançou para a posteridade ao publicar (a contragosto, diga-se) parte dos seus livros postumamente.
O incrível na vida de Brod é sabermos que ao conhecer Kafka ele, Brod, já tinha nas costas 37 livros publicados, entre romances, poesias, ensaios críticos, e até letras de música, sendo famoso nos círculos intelectuais de Praga, tido como uma espécie de menino-prodígio. Mas o que ficou de Brod para a posteridade, foi o fato de ter sido o “amigo” de Kafka que desobedecendo ordens expressas do mesmo, se negou a dar fim a obra do futuro romancista de “O processo” e fez o mundo conhecer uma obra fantástica.
Para quem tem algum manejo com biografias e conhece a de Brod, cujo título é “Franz Kafka”, sabe que ele cometeu, inevitavelmente, todos os pequenos e grandes pecados de alguém que foi tocado pelo objeto de estudo e que por ser muito próximo do biografado teve dificuldades em encontrar a distancia certa. Ainda assim, é possível dizer que tal qual a biografia exemplar de Ernest Jones sobre Freud em três volumes, a de Brod continua sendo uma grande referência.
Há também a biografia lançada por Georges Lamaire e que pode ser considerada de médio porte, ainda que bastante melodramática e um tanto excessiva. No entanto, a biografia definitiva sobre Kafka é mesmo a escrita por Ernest Pawel. Não há dúvida. Ela, é o que podemos chamar de uma grande e moderna biografia, com exceção, talvez, em minha opinião do título: “O pesadelo da razão” que tento explicar melhor abaixo.
O mergulho de Pawel no universo mental e literário desse que certamente está para a literatura mundial, como Machado de Assis para a brasileira, é fascinante e comovente. Pawel encontrou o tom certo e a distancia correta e faz um relato completo desde o nascimento até a morte de Kafka em um sanatório em Viena, por tuberculose, aos 40 anos de idade, em 1924, passando pela análise de seus raros amigos até a análise de suas obras.
E quem tem um mínimo de contato com a obra do escritor tcheco sabe ser impossível dissociá-la de sua vida pessoal. Um clichê, certamente, claro, mas no caso dele, verdadeirissimo. E nem é preciso empreender qualquer relação freudiana, de que todo romance é no fundo autobiográfico. Mesmo em livros menores (se é que é possível classificar qualquer romance de Kafka como livro menor) como “Diante da Lei”, “Um artista da fome”, ou mesmo “Um veredicto”, sem grande esforço, é possível perceber nitidamente a relação entre vida e obra, desde que, claro, se tenha algum conhecimento sobre sua vida. E foi o próprio Kafka, acrescento, quem falou dessa relação terrível entre a sua obra com sua vida pessoal.
Kafka foi filho único por seis anos consecutivo (nasceu em 3 de julho de 1883) até o nascimento das três irmãs adoradas (ele teve dois irmãos antes delas, mas que morreram pouco depois de nascer) e teve uma vida extremamente atribulada e difícil com o pai Hermann Kafka, um comerciante judeu duro, que a duras penas conseguiu subir na vida tornando-se ao final um homem abastado. A relação conflituosa de Kafka com o pai foi o motor de sua vida, o que o levou aos 36 anos (não era mais nenhum adolescente) a escrever a famosa “Carta ao Pai”, que nunca foi enviada, mas que sobreviveu e virou um dos grandes momentos da biografia do autor.
Trata-se de uma longa carta de 50 páginas sendo o retrato inalterado e assumido do peso (mais imaginário do que real) que o pai teve em sua vida. A “Carta” é uma espécie de acerto de contas contra aquele que se constituiu, na subjetividade do autor, em seu tirano e o responsável por uma vida reclusa, tímida, difícil, oprimida, com uma atitude de auto desprezo e uma incrível capacidade de se achar inútil e fracassado.
É em meio a esse universo que Pawel consegue trazer à tona sem perder os fios da meada, todos os dados coletados percorrendo-os com uma destreza e desenvoltura impar. Uma das coisas que se percebe na biografia de Pawel, é que mesmo sendo mostrado como um homem duro, Hermann Kafka jamais foi levado a um gesto de agressão física contra o filho, e que em vários momentos parece na verdade ter tido uma preocupação excessiva com ele. Mas isso claro não invalida a imaginação fértil que tomou conta de Kafka ao descrever e relatar o pai como a de um “juiz” (tal qual no “O processo”) supremo e onipotente diante de quem o filho só podia se sentir um “nada absoluto”.
Pawel claro desce a análise freudiana e aborda com maestria e segurança o famoso “complexo de Édipo”, chegando ao ponto de dizer corretamente que muito do ódio de Kafka ao pai, era na verdade uma transferência encoberta de um ódio singular e verdadeiro a mãe, que na imensa dedicação ao marido (de fato, Julie Kafka, uma mulher bonita, foi uma esposa extremamente dedicada) deixou no filho uma sensação de desamparo e depressão imensa. O que Kafka queria no fundo, como ele mesmo revela na “Carta” era ser amado pelo pai. Mas mais do que o pai, era ser amado pela mãe.
Ao longo da biografia, é possível perceber, mesmo levando em conta o auto grau de irrealidade, o preço emocional e subjetivo que ele teve que pagar para se transformar e se tornar no gênio literário que foi. Mesmo com um grau de debilidade emocional, ficamos sabendo ao ler a biografia de Pawel, que Kafka foi um aluno bom, cumprindo com sucesso todas as etapas de sua vida como estudante, e mais ainda como o de um exemplar funcionário público chegando mesmo a ocupar um cargo de chefia. No entanto, subjetivamente, Kafka nunca se viu assim, e na verdade sempre se percebeu (e acreditava firmemente nisso) como alguém que trazia a marca da incompetência, e mesmo diante das evidencias reais opostas, qualquer pensamente em contrario lhe era impossível. Na verdade, é possível dizer que psicologicamente sua atitude era a de alguém que nutre sentimentos de desprezo profundos por si, com uma imagem deteriorada de si mesmo, fixando-se numa posição de alguém esquecido e não amado.
A auto flagelação, hoje sabemos via Freud, é uma forma que o pecador encontra de expiar uma culpa intensa sentida subjetivamente como uma dor, mas da qual ele não consegue fugir. Na verdade, ele encontra nessa posição, ou nessa fixação, um gozo inconsciente com o próprio sofrimento que se torna obviamente extremamente gratificante.
A questão é: e como essa pessoa que se percebia tão amedrontada e fragilizada diante da vida e dos outros, encontrou uma saída para sua solidão incontornável ante a sua própria condição? A resposta mais simples é: escrevendo. Escrevendo romances, contos e até peças de teatro que nunca chegaram a ser publicadas. Que fique claro, e é isso que a biografia de Pawel nos mostra, Kafka não era com os poucos amigos, um choraminguento chafurdando num comodismo. Era alguém que tentava desesperadamente “fugir do gueto invisível” ou do “frio interior” em que se encontrava, e a salvação só podia ser pela expressão pessoal através da literatura.
Seus livros mais famosos claro, continuam sendo por ordem, “A metamoforse” que tem um dos inícios mais famosos da história da literatura ocidental, “O processo”, “O castelo”, “Amerika”, e “A muralha da China”.
A literatura de Kafka já ganhou diversos epítetos e classificações, indo desde realista ao realismo fantástico, até a condição de ultra moderno. De fato se pode englobar nela cada uma dessas linhagens. Mas escrever para Kafka não era uma forma de buscar a glória (de forma consciente bem entendido), e sim uma forma de se manter vivo. “Escrevo para fugir do meu pai”, disse ele em uma carta famosa a Max Brod. Mais do que fugir do pai, ele escrevia para se encontrar e se manter vivo.
No entanto, penso eu, o que não é possível diante de sua literatura, pelo menos a meu ver, é perceber uma sociologia profética do nazismo futuro, se bem que seja uma analise tentadora como forma de caminho e pesquisa de investigação.
Pawel na referida biografia resiste a esse tipo de conclusão, e percebe em Kafka como todo judeu um ser radicalmente individualista, ainda mais pela sua condição de extrema timidez (diferente de Max Brod, que exercia não só um fascínio social, como era de uma sociabilidade frenética e compulsiva, o que terminou em muito ajudando o próprio Kafka). Particularmente concordo com a análise de Pawel.
Também não consigo ver no titulo da biografia “O pesadelo da razão” algo que expresse em uma frase, sua vida. Mas é inegável que Pawel, que mora em Nova York e escreve resenhas para The New York Times Book Rewiew, tocou em pontos cruciais da vida desse escritor alto, esguio, elegante e que deixou para todo o amante da literatura uma obra insuperável, original e genial. Se ele se achava o “nada” diante de um pai opressor e onipotente, na sua visão, a ponto de impedi-lo de querer ver valor na própria obra e destruí-la, no entanto, e contraditoriamente, foi essa mesma condição que o levou a escrever uma vasta obra e que através de Max Brod se perpetuou e lhe deu a condição de “ser algo”, ainda que postumamente. Mas, como diz o poeta, há autores que já nascem póstumos. Kafka foi um deles. Para a nossa sorte.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo artigo, parabéns...
Depois disso já estou a procura dos livros de Kafka.

ma gu disse...

Alô, Adriana.

Laurence corre sua pena sobre o papel com leveza, encadeamento de idéias, prosa fácil, quase uma peça literária, que deveria ser inscrita num rol imaginário, a ser nomeado "O prazer de ler".