11 de dez. de 2007

Prerrogativa ou Privilégio? - 2

Por Eduardo Mahon é advogado em MT e Brasília.

No primeiro artigo da série, desvelamos o senso-comum em afirmar que a prerrogativa de ser julgado por um tribunal seria forma de privilégio. Não é. A renúncia do Deputado Federal Cunha Lima comprovou isso. Quis fugir do julgamento do Supremo Tribunal e, nele, do Relator um tanto quanto contundente, Joaquim Barbosa. Foi com a renúncia, que o Relator levanta uma alternativa de todo heterodoxa – continuar processando e julgamento um cidadão que não guarda mais qualquer foro pela função, ultrapassando a competência originária da Suprema Corte. Em nossa opinião, a tese naufragou porque foi posta como forma de vingança pela manobra, como ficou óbvio na acalorada discussão no STF.
Antes, porém, de discutirmos o comportamento do STF, vale a pena uma palavra acerca da competência constitucional em crimes dolosos contra a vida. Tanto o Tribunal do Júri quanto o foro de prerrogativa estão inscritos no ordenamento constitucional brasileiro. Ocorre que, no entrechoque de um e de outro, é evidente que o foro pela função é prevalente quanto ao Júri, isso pelas justificativas esposadas no ensaio anterior. O que se visa preservar é o cargo da exposição e não o homem por detrás dele. Assim, mormente num judiciário leigo, formado por homens do povo, quem dirá não haver forte comoção, quando processado um líder querido de seu povo ou um outro, mais odiado pela população? De qualquer forma, tratando-se de homicídios de natureza militar, o Tribunal do Júri é preterido pelas varas especializadas – então, não há nenhuma novidade e nem afronta ao Júri.
Para os que gostam de se aprofundar na questão essencialmente jurídica, diríamos que a competência do Tribunal do Júri é sim prevalente e atrativa. Noutras palavras – quando o acusado é processado por outro delito em conjunto com um crime doloso contra a vida, em tese, o outro delito é deslocado para o conhecimento dos sete jurados. Exceções há (crimes de menor potencial ofensivo, por exemplo), mas só confirmam a regra geral. Ocorre que, mesmo com a prevalência constitucional e a atração por conexão, o Júri não impõe a competência absoluta, sobretudo quando ladeada com outras prerrogativas também de natureza constitucional. Foi o caso de Ronaldo Cunha Lima, por exemplo.
Resta saber – após a renúncia, qual o foro competente para julgar um ex-Governador, um ex-Deputado Federal, pelo crime que, quando realizado, o acusado estava na função de Governador da Paraíba? Não só acadêmico o ponto controvertido, mas de interesse para todos os brasileiros que precisam se ilustrar das questões jurídicas que atormentam a opinião pública. Para respondermos à intrincada polêmica, é preciso fixar algumas balizas: 1) se importa saber qual o cargo do réu, à época dos fatos; 2) se importa saber qual o cargo do acusado, durante a instrução processual e na iminência do julgamento; 3) se importa saber se o acusado poderá ser julgado em tribunais superiores, mesmo sem o mandato eletivo ou qualquer outra prerrogativa.
Quando desferiu os tiros contra a vítima, alegando legítima defesa da honra, o acusado Ronaldo Cunha Lima era Governador da Paraíba. Portanto, seria inicialmente processado e julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, como de fato foi. Lá, recebida a denúncia por homicídio qualificado e interrogado, o então Governador deixou o cargo para se candidatar e eleger-se Deputado Federal. Pelo regramento vigente, o processo foi deslocado imediatamente depois da diplomação para o Supremo Tribunal Federal. Naquela Excelsa Corte, o processo seguiu seu curso ganhando o processo proporções enormes com volumes e mais volumes. Testemunhas foram interrogadas, diligências realizadas, colhidas as alegações finais da parte acusadora e da parte acusada e, pautado o julgamento para ser proferida a sentença condenatória ou absolutória, eis que Cunha Lima renuncia. E agora?!
A discussão no Supremo Tribunal passou pelo viés do inconformismo de alguns Ministros com a manobra processual. E, com um caráter vingativo e ressentido, um ou outro propôs uma espécie de sanção, não aceitando os efeitos da renúncia sobre o julgamento do processo. Outros Ministros, mais técnicos do que vingativos, argumentaram pela perpetuação da jurisdição daquele sodalício.
Finalmente, a maioria do colegiado conformou-se com as atuais regras processuais para suspender o julgamento e remeter o processo para a primeira instância, ao Tribunal do Júri que se tornou competente para analisar o crime. Cenas do próximo capítulo: a polêmica entre os Ministros do STF e os comentários de cada voto farão parte do próximo artigo.

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